De uma das irmãs que participaram no meu evento no Brasil, em maio de 2016, recebi este relato, que reflete a vida de tantas e tantas de nós:
A Menarca, a Irmandade e a Sintonia com a Deusa
Inanna
"Para contextualizar minha experiência e proporcionar um entendimento maior a respeito de quem eu sou, falo um pouco sobre a criança e adolescente sofrida que fui e que se tornou esta mulher em busca de sabedoria, equilibrada e amorosa que sou hoje.
Tive pais simples, mãe dona de casa, pai motorista. Mãe que se viu sozinha ao ficar grávida para eu nascer, já sendo mãe de três filhos, uma menina e dois meninos. Tornou-se costureira para sustentar esses seus quatro filhos e nunca pôde contar com nenhuma contribuição de meu pai, nem emocional e nem financeira. Ele simplesmente não estava lá.
Então eu, ao nascer, tinha um pai totalmente ausente e uma mãe abandonada, sofrida, amargurada, que teve poucas chances de aprender sobre ela mesma e sobre o amor em qualquer de suas faces. Ela sofreu muito com a família, minha avó e meus tios dificultaram bastante a vida dela.
Como as dificuldades eram enormes, tanto as culturais, quanto as financeiras e psicológicas, ela tomou algumas decisões, às vezes pressionada pela família, principalmente minha vó, às vezes inconscientemente movida pelas próprias dores e sentimentos.
Nesse contexto confuso e sofrido estava eu, a filha caçula, nascida num momento de abandono, de uma mãe destroçada pelo sofrimento, que aos cinco anos foi levada para viver com minha avó. Vivi com ela dos cinco aos sete anos, quando aprendi a ler e aí descobri um dos meus passatempos favoritos. Mas na casa de minha avó não havia nada para uma criança de sete anos ler, então eu lia revista de fotonovelas, de minha tia, às escondidas.
Para resumir um pouco, passei a infância e a adolescência, depois que saí da casa de minha avó, alternando entre estar na casa de minha mãe e indo morar um tempo com cada uma de minhas tias e também num internato católico. Foram muitas experiências traumáticas, entre elas as de ter que me mudar de escola quase todo ano e refazer as relações com colegas e professores. Fui maltratada por parentes, avó, algumas tias e professoras. Minha avó detestava negros e toda minha família materna ainda guarda resquícios com falas tipo: só podia ser preta mesmo! Preto não dá carreira certa. Brincadeiras sem graça que já me entristeceram muito e que hoje, não mais. Fui humilhada por não ter pai, por ser filha de negro – não tendo pai e sendo filha de negro não iria dar nada que prestasse – era uma fala recorrente. Hoje, sei que sofri muito bulling – naquela época nem sabia o que era isto – sem ter a quem recorrer, eu era muito sozinha, me sentia totalmente desamparada. Esta sensação de desamparo me acompanhou pela vida. Eu só me curei muito recentemente, ou melhor, ainda estou em processo de cura. Volta e meia me deparo com mais uma situação, que não lembrava mais e percebo que ainda há feridas a serem curadas.
Mas também tive amigas e algumas pessoas que me acolheram e sei que me amaram.
Todas estas experiências fizeram com que eu me tornasse uma pessoa ousada, flexível e capaz de se enturmar facilmente. Aprendi, a duras penas, a me comunicar e a perceber o ambiente e as pessoas com facilidade.
Então chegamos aos dias de hoje. Dia de evento em Florianópolis.
Estamos numa Tenda Vermelha, como parte das atividades da Magia das Ilhas Sagradas tradição Celta – Formação de sacerdotisas, onde, mais uma vez, me proponho a trabalhar e curar o feminino. Como em tudo que faço mergulhei fundo e inteiramente na experiência.
Luisa Frazão Guardiã e Sacerdotisa Celta propõe que cada mulher fale como foi a sua primeira menstruação.
Estabelece-se um momento de partilha de uma beleza emocionante. Ouvi muitos relatos, e o que mais me impressionou foi que a maioria tinha histórias lindas de acolhimento e celebração, bem diferentes da minha. Até aquele momento eu não tinha ideia do quanto estive machucada por este episódio, durante muitos anos de minha vida.
Aos 13 anos eu estava num dos intervalos que passava na casa de minha mãe. Era um dia como outro qualquer. Não me lembro do momento exato que fiquei menstruada, mas me lembro bem, ainda tenho nítida, a sensação de inadequação e de que, como sempre, eu estava fazendo alguma coisa errada. Lembro-me de minha mãe dizendo asperamente que a vida continuava e que tudo estava normal. Então, eu deveria ir à aula. Lembro-me de me sentir muito envergonhada, de tudo, de estar suja, de que havia algo errado e eu não sabia o que era. Para mim era impossível sair de casa e enfrentar o olhar das pessoas, parecia que todos sabiam que eu estava suja de sangue.
Naquele dia, foi muito difícil vestir o lindo uniforme que eu adorava. Era uma blusa branca de botões e uma saia azul cobalto, com dois machos na frente e dois atrás, que davam movimento à saia quando eu andava. Eu sempre me sentia linda dentro dele, eu adorava usar uniformes de modo geral. Mas naquele dia eu queria que ele fosse feio pra ninguém me notar. Queria estar invisível, queria não existir para não ter que sair à rua. Lembro-me de implorar à mamãe para ficar em casa, mas ela se manteve irredutível como normalmente ela fazia quando emitia qualquer opinião ou ordem a ser cumprida. Vá pra aula e não me amole! Eu fui.
Andei pelas ruas chorando e tentando disfarçar, peguei o ônibus e não me sentei. Assistir aula foi uma tortura. Sentei tirando a saia de debaixo de mim, para que não se sujasse. E o recreio que não acabava mais? Enfim, não me lembro se isso aconteceu só no primeiro dia ou nos demais e nos meses seguintes até eu me acostumar, mas a sensação de solidão e de estar fazendo algo errado ficou.
Não relatei esta parte, mas lembro-me, também, da raiva que eu tinha de ter que lavar os panos sujos de sangue. Aquilo me incomodava muito. Lembro-me, também, de sentir muita raiva e inveja da minha irmã que é seis anos mais velha que eu e já trabalhava e comprava absorvente higiênico – o Modess – só pra ela. Eu tinha que continuar lavando os panos e muitos deles eu joguei fora, escondido de minha mãe.
Falar disso na Tenda Vermelha não foi difícil, mas foi doloroso. Eu falava e sentia de novo aquela frustração, aquele desamparo, aquela humilhação de ter que sair à rua. Foi uma dor profunda, que eu nem sabia que ainda existia em mim. Estava guardada e de repente veio à tona.
E aí, fui acolhida pelas outras mulheres, que me abraçaram, me perfumaram e me fizeram sentir que eu não estava sozinha, que eu tinha braços a me enlaçarem, mãos que me acariciavam, doces vozes que me diziam de seu amor por mim. Tudo que eu gostaria de ter vivido lá atrás e que não foi possível. Então o milagre da cura é possível e acontece! Ele não foi imediato, foi um processo que se iniciou ali e continuou com uma dor terrível na coluna. Terminou à noite, comigo sozinha no quarto do hotel, com um choro convulsivo que lavou minha alma. Adormeci de tanto chorar e dormi toda a noite. Acordei, no outro dia, me sentindo bem. As lágrimas ainda apareceram de manhã, mas já não eram de dor, eram de emoção por relembrar toda aquela experiência maravilhosa.
Eu já vivi muitos processos de cura, porque venho buscando isso em minha vida de várias formas, este foi um dos mais marcantes e especiais.
Agradeço a todas as mulheres que estiveram comigo naquele momento, as que eu conheço e as que eu não conheço; as que me abraçaram e as que choraram comigo. Foi um momento de irmandade total, onde me senti amparada e em total sintonia com a Deusa que habita em mim."
Inanna
Imagem: Foto do evento